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Ed. 02 – A realidade é surreal
o afro-surrealismo como potencializador da estranheza

Imagem promocional da 4ª temporada de “Atlanta”.
Afro-Surrealistas usam o excesso como o único modo legítimo de subversão, e a hibridização como forma de desobediência. [...] Afro-Surrealistas distorcem a realidade para um impacto emocional.
“Três bofetadas”, o 1º episódio da 3ª temporada de Atlanta (2016-2022), acontece todo durante um sonho do protagonista. Nesse sonho, acompanhamos a história de Loquareeous, um garoto negro que, após descobrir que sua turma assistirá a Pantera Negra 2, começa a dançar em cima da mesa e é mandado para a direção por isso. A mãe e o avô de Loquareeous são chamados na escola e, encerrada a conversa com a diretora, uma professora branca vê o garoto ser repreendido em um corredor pelo avô com três bofetadas.
Na sequência, o Conselho Tutelar vai até a casa de Loquareeous, ele deixa de viver com a família e é adotado por um casal de duas mulheres brancas que já adotaram outras três crianças negras. Com a chegada de Loquareeous (que passa a ser chamado de Larry) na família, o suspense do episódio vai aumentando e a trama fica cada vez mais estranha. As crianças sofrem uma série de privações relacionadas à alimentação e outros recursos devido ao estilo de vida imposto pelas mães adotivas e são forçadas a trabalhar numa horta que há no quintal de casa — o que constrói um paralelo com as plantações do período da escravização.
Com todas as situações absurdas desse episódio, o mais assustador para mim foi saber que ele é inspirado em uma história real. Felizmente a série não dá o mesmo desfecho trágico para Loquareeous.
Enquanto assistia à 1ª temporada de Atlanta pela primeira vez, havia algo que me incomodava, mas eu não sabia explicar. Era como se houvesse uma estranheza sempre à espreita, mas ao mesmo tempo não fosse completamente revelada. Essas situações podiam ser mais ou menos explícitas, percebidas ou não pelas personagens, às vezes apresentadas de forma cômica. Só depois entendi que isso acontece porque a série utiliza o surrealismo para abordar as temáticas. Esses elementos sobrenaturais, mais discretos na 1ª temporada, vão se tornando cada vez mais evidentes da 2ª em diante.
Um carro invisível, uma casa mal-assombrada, um homem misterioso fazendo sanduíche de Nutella no ônibus e depois desaparecendo misteriosamente, um personagem perdido em uma floresta aparentemente sem fim, uma festa em que o anfitrião branco é apropriador e especialista em cultura africana. Tudo isso faz parte do universo de Atlanta. Acompanhando a vida do protagonista Earn, enquanto ele busca formas de melhorar sua situação financeira e passa a ser empresário do primo rapper, nos deparamos com diversas situações estranhas que abordam questões sociais e raciais. O sobrenatural não é algo que rompe com a realidade, porque isso faz parte da realidade.
Atlanta é uma série que pode ser inserida no movimento afro-surrealista, bem como outros trabalhos de seu criador Donal Glover, seja como diretor/roteirista ou como Childish Gambino, nome que ele utiliza na música. Ele já explorou o movimento visualmente em seus vídeos musicais, mas acredito que This is America é o melhor exemplo. O afro-surrealismo abraça a estranheza para criar uma estética que fala sobre o presente da população negra. Assim situações absurdas emergem de questões verossímeis, brincando com os limites entre realidade e ficção.
D. Scot Miller, autor do Manifesto Afro-Surreal, diz que “O Afro-Surreal pressupõe que além deste mundo visível, existe um mundo invisível empenhado em se manifestar, e é nosso trabalho revelá-lo. [...] Afro-surrealistas reconhecem que a natureza (também a natureza humana) cria mais experiências surreais do que qualquer outro processo teria a esperança de produzir.” O que o movimento afro-surrealista faz é se apropriar de uma sensação de estranheza já existente para explorá-la em suas temáticas, trazendo-a para a superfície e potencializando absurdos.
Em estudos que relacionam ficção especulativa e representação negra, o sentimento de alienação é sempre mencionado como parte da experiência negra moderna, como resultado do colonialismo. Nesse sentido, histórias sobre abdução alienígena, contato com outras espécies, androides, racismo fantástico são exemplos de como a especulação é um recurso interessante para abordar a negritude. É como oferecer uma nova lente para questões já existentes e que, a partir de então, podem ser exploradas de formas interessantes.
No afro-surrealismo, podemos incluir trabalhos de artistas como Jean-Michel Basquiat, Toni Morrison, Beyoncé e Kendrick Lamar. Há vários exemplos na literatura, na música e no audiovisual (que acabou sendo o foco aqui). A série Enxame (2023), foi o motivo de eu ter começado a escrever esse texto, mas ele estava ficando tão grande que acabei deixando o foco mais em Atlanta. Quando Enxame estreou, eu andava interessado em ler mais sobre afro-surrealismo e vinha buscando ampliar minhas referências. Isso me fez reassistir às duas primeiras temporadas de Atlanta antes de começar a terceira, que entrou no catálogo da Netflix em março. As reflexões que fiz aqui foram mais com o intuito de apresentar o movimento, por isso quero deixar uma listinha com algumas indicações afro-surrealistas.
Enxame (2023) — disponível no Prime Video.
Aqui Donald Glover explora o surrealismo de forma direta e logo no início da narrativa. Apesar de muito se falar sobre como a série é baseada nos fãs da Beyoncé (e por extensão na cultura de fanbases de um modo geral), a série aborda outros temas como trauma, saúde mental, luto e o impacto das redes sociais em nossas vidas. As convenções do horror são tensionadas ao colocarem uma mulher negra como serial killer e os episódios avançam em situações cada vez mais absurdas. No fim, é difícil distinguir o que de fato é realidade no universo da série. O penúltimo episódio, na minha opinião, é o mais realista e também o mais assustador.
Desculpe te incomodar (2018), Boots Riley.
Esse filme começa com uma situação estranha e simples até: o protagonista trabalha com telemarketing e descobre que consegue vender mais se falar como branco ao ligar para os clientes. Depois tudo fica bem mais surreal e no fim temos uma crítica muito boa sobre trabalho e capitalismo.
Lemonade (2016), Beyoncé.
Pra mim o surrealismo no Lemonade é bem forte nos poemas da Warsan Shire, narrados pela Beyoncé ao longo do filme, porque eles envolvem dor, luto e outros elementos que, a meu ver, se aproximam do horror. Esses elementos também são explorados visualmente. Por exemplo, entre “Pray You Catch Me” e “Hold Up”, vemos Beyoncé pular de um prédio e cair em um quarto cheio de água. Já na sequência de “6 Inch” traz muitos aspectos de uma casa mal-assombrada que acaba em chamas.
Random Acts of Flyness (2018-) — disponível na HBO.
Essa aqui é uma viagem pura. É uma série de episódios curtos e que aborda temas delicados misturando várias linguagens do audiovisual. Recomendo porque o surrealismo é bastante marcado e a série é muito original e bem-feita. Em alguns momentos, são mostradas cenas reais de violência, então isso pode ser gatilho dependendo de quem estiver assistindo.
Orfeu do Carnaval (1959), Marcel Camus.
Essa lista está muito estadunidense, credo. Mas Orfeu do Carnaval é um dos poucos exemplos nacionais que encontrei em minhas pesquisas. Com uma visão bastante estereotipada do Brasil, o filme se passa durante o Carnaval do Rio de Janeiro e reconta o mito de Orfeu, que se apaixona por Eurídice, uma mulher recém-chegada à cidade fugindo da morte. O sobrenatural é mostrado principalmente em como a figura da Morte aparece, na forma de um homem fantasiado, mas também há outros elementos.
Corra! (2017), Nós (2019) e Não! Não olhe! (2022) — todos do queridíssimo Jordan Peele.
Talvez quem mais dispense apresentações, porque o trabalho do Peele tem alcançado mais pessoas. Tem sido interessante acompanhar o que ele vem fazendo desde Corra!, que é um ótimo filme em vários sentidos e um grande exemplo de afro-surrealismo. Caso não tenha visto nada do Peele ainda, comece pelo filme de 2017 e depois corra! para ver os outros dois. Os três trabalham a especulação e o surrealismo de forma distintas, mas com algo muito próprio do diretor.
Referências bibliográficas
BAKARE, Lanre. From Beyoncé to Sorry to Bother You: the new age of Afro-surrealism. Disponível em: https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2018/dec/06/afro-surrealism-black-artists-racist-society
MILLER, D. Scot. Um manifesto do afro-surreal. Trad. Stephanie Borges. Em: Revista Ponto Virgulina, n. 1, p. 294-297, 2020.
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