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Ed. 03 – Velho demais para começar algo novo
Existe vida após os 30?

Mês passado, olhando o livro Roube como um artista, do Austin Kleon, e tentando decidir se quero reler, vi uma frase logo no início que chamou minha atenção: “Todo conselho é autobiográfico”. Isso combinou com o tema que escolhi para esta edição da newsletter, porque a reflexão gira em torno de um sentimento que eu tinha antes de ser publicado. Então o texto de hoje será tanto um conselho para meu eu do passado quanto uma conversa com quem também já se sentiu ou se sente da mesma forma.
Indo direto ao ponto, houve uma época em que eu acreditava que se não publicasse nada antes de completar 30 anos, deveria desistir da escrita. Assim mesmo, sem negociação, tudo ou nada, ponto final. E isso no auge dos meus 20 e poucos anos. Era uma meta que estabeleci para mim e que em vez de me trazer tranquilidade e me ajudar a ir atrás dos meus objetivos, só me deixava pressionado e ansioso diante da possibilidade de não conseguir. Hoje até me sinto um pouco bobo quando me lembro disso, mas era uma questão que realmente me incomodava e algo que eu afirmava para pessoas próximas.
Mas há muita coisa por trás desse pensamento.
Primeiro, para a maioria das pessoas que escrevem, desejar ser publicada/o é algo natural, afinal, queremos que nos leiam. E não há problema algum em querer isso ou outras conquistas. Decidir ser artista e se empenhar para desenvolver técnicas é um passo importante num tipo de jornada que costuma ser contada através de romantizações sobre “talento”, jovens prodígios e a defesa de que quanto mais cedo, melhor. Talvez você já tenha visto algum post por aí mostrando o trabalho de algum escultor, elogiando seu trabalho excepcional que, para completar e nos deixar mal, foi feito na juventude. Histórias assim podem inspirar, mas servem mais para gerar comparações desnecessárias quando são acompanhadas de perguntas como “qual é a sua desculpa?” para não fazer algo semelhante. E o pior: nos fazer achar que se não conquistarmos algo até determinado ponto de nossas vidas, não há mais motivos para continuar tentando ou mesmo começar. É como se a própria vida acabasse.
Quando decidi que seria escritor, lembro de ver textos nas revistas que comprava na época sobre Christopher Paolini, autor que publicou Eragon quando tinha 19 anos. Isso me levava a acreditar que se eu me esforçasse, poderia conseguir essa façanha com a mesma idade ou só alguns anos mais velho. Porém algo que os textos não mencionavam é que os pais de Paolini tinham uma editora, o que facilita bastante as coisas. E aqui não estou entrando nos méritos nem desmerecendo o trabalho desse autor em específico, é apenas um exemplo. Aonde quero chegar é: no meu horizonte de expectativas faltava histórias de artistas que começaram nas mais variadas etapas da vida. Conhecer histórias de pessoas como Conceição Evaristo e N. K. Jemisin que publicaram seus primeiros livros já mais velhas. Claro que esses dois casos envolvem outras questões, pois estamos falando de escritoras negras, e não podemos ignorar como racismo e sexismo operam juntos para impedir ou dificultar que esse grupo acesse determinados espaços. Para algumas pessoas, encontrar oportunidades no meio artístico é mais complicado por causa de questões que estão para além de “talento”, habilidade, ou como quisermos chamar.
Eu coloco “talento” entre aspas porque cada vez mais fui deixando de acreditar nisso como algo que nasce com a gente, algo que se você não possuir é melhor ir fazer outra coisa ou matar de uma vez por todas o eu artístico que existe em você. Hoje acredito que podemos até possuir certa pré-disposição para determinada atividade, mas isso também é influenciado pelo nosso meio, pelas coisas que temos oportunidade de conhecer, os gostos que a gente cria ao longo da vida etc. E algo importante de se lembrar é que faz parte do modelo capitalista nos colocar na lógica da comparação, alimentando o sentimento de atraso em relação aos outros, com medo de envelhecer, tendo crise dos 20 anos, dos 30, temendo o retorno de saturno e achando que sempre somos velhos demais para começar algo novo.
Felizmente, antes dos 30, me livrei da crença de que precisava de uma idade certa para ser publicado. Aqui não importa registrar quantos anos eu tinha quando consegui isso, mas sim dizer que o que me tranquilizou foi entender a importância da escrita criativa na minha vida. Comecei a me perguntar o que eu faria de fato caso aquele medo da não publicação se confirmasse. Eu continuaria tentando? Eu deixaria de escrever? Eu continuaria escrevendo mesmo que nunca publicasse nada? Sim, não e sim. Eu finalmente entendi que, apesar das minhas inseguranças, não havia mais volta. A escrita já tinha tomado um lugar central na minha vida e eu não deixaria de fazer algo que gosto por falta de validação.
Falo a partir da literatura, mas sei que sentimentos assim existem em outros contextos. Somo levados/as a acreditar que para desenhar ou tocar um instrumento, por exemplo, é preciso aprender desde cedo. Ou que vamos parecer ridículas/os se começarmos aquele curso de ________ [insira aqui uma atividade artística de sua escolha]. Pra mim foi libertador saber que não há momento certo para começar e que temos direito de aprender e de errar no caminho. E ter a percepção de que, como diz o Kleon no livro que citei lá no início, “é no ato de criar e de fazer nosso trabalho que descobrimos quem somos”. Deixar de começar, por qualquer motivo que seja, é o que, na verdade, impede essa descoberta.
Antes de encerrar a edição de hoje, quero fazer duas coisas. Primeiro, retomar um pouco o assunto da edição passada sobre afro-surrealismo e indicar a série Sou de Virgem que estreou recentemente no Prime Video. É uma série bem viajada e no início causa certo estranhamento, mas a ideia é boa, diferente e a história vai avançando até construir uma crítica interessante. Afro-surrealismo puro!
Também quero aproveitar e fazer um pedido. Se você estiver gostando dos textos da newsletter, que tal indicar pra alguém que também pode se interessar? Seria muito bom alcançar mais pessoas. Quero a partir de agora manter uma frequência de pelo menos um texto por mês. Então, vá lá e espalhe a palavra. Serei muito grato!
Até mais! Nos vemos na próxima edição. :)
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