- Diário Especulativo
- Posts
- Ed. 04 – "Nenhuma dor é pra curar": a vida através do blues
Ed. 04 – "Nenhuma dor é pra curar": a vida através do blues
Passando um tempo com James Baldwin e Tuyo

Jimmy para de datilografar por um momento e encara o texto no papel. Relê tudo e percebe que ainda não está do jeito que gostaria. Precisa encontrar as palavras certas, precisa construir a emoção certa. Ou talvez precise parar de exigir tanto de si. O cigarro no cinzeiro apagou e ele nem percebeu, então decide acender outro e aproveita para se levantar e esticar o corpo. Indo até a vitrola, Jimmy retira o disco de Nina Simone, de quem sente saudades, e coloca outro de Billie Holiday para tocar. Costuma ouvir música quando escreve, e para esse manuscrito em específico isso é ainda mais importante. Afinal, o blues está lá, conduzindo toda a história.
Isso não aconteceu ou pode ter acontecido. Imaginei cenas parecidas como essa enquanto lia Se a rua Beale falasse, de James Baldwin. Me sentindo próximo das personagens e do próprio Baldwin — como se ele fosse um velho amigo. A proximidade foi gerada não apenas pela habilidade que ele possuía com as palavras, mas também por ser quem foi e representar o que representa pra mim.
Este texto não é uma resenha, mas quis escrever algo a partir de um dos aspectos que mais chamou minha atenção em Se a rua Beale falasse: como a música aparece ao longo da história. E não qualquer estilo musical, mas um muito importante para pessoas negras: o blues.
“Preocupada com minha alma”
Antes da musicalidade, o que primeiro chamou minha atenção em Se a rua Beale falasse, publicado em 1974, foi o ponto de vista. O livro se passa em Nova York e conta a história de um jovem casal, Tish e Fonny, que tem a vida desestruturada quando Fonny é preso injustamente, acusado de estuprar uma mulher. Pouco tempo depois, Tish descobre que está grávida e começa a fazer de tudo para libertar Fonny da cadeira, com a ajuda de sua família e advogados. Quem conta a história é Tish, acompanhamos suas idas à prisão para visitar Fonny, suas preocupações e aflições, lembranças do relacionamento dos dois, conversas com o advogado e as dificuldades que a família enfrenta para provar a inocência de um homem negro.
Baldwin aborda temas pesados nesse livro, escancarando o racismo de uma sociedade injusta capaz de destruir tantas almas. Há muita dor e raiva, mas também há coragem e amor. Enquanto tudo acontece, uma vida vai literalmente crescendo dentro de Tish. A criança cada vez mais perto de nascer acaba se tornando um símbolo de esperança, um lembrete de que a vida continua apesar de tudo. Ou, como a própria Tish diz em um momento: lembrete de que “o que pode piorar pode também melhorar; e o que pode melhorar pode também piorar. E que tudo isso — sempre — só depende de mim.”
Nunca gostei da ideia de resiliência como geralmente é colocada, como se o sofrimento fosse algo necessário para o crescimento pessoal. Ninguém deveria se sentir obrigado a aprender ou a evoluir através de um processo doloroso. Acredito que podemos aprender com situações difíceis, mas também com as experiências boas — ou não aprender nada em ambos os casos. O livro de Baldwin trabalha essa dimensão de um jeito interessante, porque a situação é bastante complicada, quase impossível de ser resolvida, então há sim sofrimento e melancolia. Só que, ao mesmo, é um livro sobre duas pessoas muito apaixonadas. O amor de Tish e Fonny é abordado de uma forma bonita e configura parte essencial para a história.
Nesse movimento de encontrar sentido numa vida que coexiste com a dor, o blues é outro ponto central no livro. A música está sempre lá como uma trilha sonora. Às vezes as personagens colocam determinado disco para tocar, em outros momentos ouvem uma música em algum lugar público, ou ainda letras de canções são referenciadas em diálogos ou na narração. Artistas como Billie Holiday, B. B. King, Aretha Franklin e Ray Charles são mencionados. A música é usada como reflexo dos sentimentos e das experiências, algo que vai ilustrando a própria vida. As personagens pensam e sentem através das canções.
Isso aparece muito bem descrito em outro livro do Baldwin, quando o protagonista, em um momento de fragilidade, ouve uma música e é obrigado a pensar sobre suas emoções.
There’s a thousands of people, Bessie cantou, ain’t got no place to go*, e pela primeira vez Rufus começou a ouvir, na monotonia tremendamente sutil desse blues, algo que falava à sua mente perturbada. O piano estoico e irônico repetia o relato da cantora. Agora Rufus estava sem ter para onde ir — ‘cause my house fell down and I can’t live there no mo’**, cantou Bessie —, ele ouviu o verso e o tom da voz dela e pensou como os outros conseguiram vencer o vazio e o horror com que ele agora se deparava.
*Há milhares de pessoas que não têm para onde ir / **porque minha casa desmoronou e não posso mais morar lá.
Uma vez vi um documentário que descrevia o blues como uma tecnologia negra criadora de todos os outros gêneros musicais. O blues surgiu no sul dos Estados Unidos no século XIX e tem raízes nas canções de trabalhos e spirituals que eram cantadas por negras/os escravizadas/os nas plantações. Por isso possui forte relação com a espiritualidade e com os ideais de liberdade do período pós-escravidão. O blues se espalhou por outros estados conforme pessoas negras deixavam o sul e, ao longo do século XX, foi originando a música gospel, o soul, o jazz, o rock, o R&B e o hip hop. Com melodias e letras melancólicas, o blues fala sobre a vida de uma forma verdadeira, explorando experiências boas e ruins, corações partidos, opressão, amores, dores, clamando por uma existência mais livre.
“Nenhuma dor é pra curar”
E quando é pesadelo dizem que sempre é mais difícil de conseguir acordar
Nenhuma dor dura pra sempre mas essa chegou pra me desafiar [...]
Vai passar (você vai esquecer)
É assim
Difícil é lembrar (vai voltar)
Você vai esquecer (não tem fim)
Prestes a terminar de escrever esse texto, fiquei pensando em como a banda Tuyo se aproxima dessa lógica do blues que descrevi brevemente aqui. Eles fazem um som que pode ser descrito como folk futurista. As letras geralmente são sobre dores e questões difíceis que não são tratadas de forma romantizada, mas sim numa perspectiva de que na vida também precisamos lidar com sentimentos ruins. Por isso gosto quando eles cantam que “nenhuma dor é pra curar”, numa canção que aborda o sofrimento como algo passageiro, sim, porém sem prazo pra acabar. Pode passar, pode voltar, pode inclusive não ter fim. O tempo da cura é um tempo próprio e cada pessoa passa por esse processo de um jeito único.
Em uma entrevista para o Papel Pop, a banda falou sobre a intenção das letras. Deixo um trecho aqui:
Eu não queria precisar passar por todas as coisas que eu passei pra aprender alguma coisa, eu aprendo lendo. Escreve pra mim! No “Pra Doer” e “Pra Curar”, em nenhum momento pensamos em romantizar a dor. A gente pensou em não negar que ela existe. A ideia era assim: “Machucou? Não adianta você fingir que não tá lá, tá aberta a porcaria, sabe? Olha lá, vai ter que sentir.” […] É dos alicerces do capitalismo, né? Você se sentir a pessoa mais especial, que precisa de alguma coisa para viver melhor. E aí você se dá conta, quando tem contato com a realidade, que você não é nada. Dói. Talvez não traga nenhuma reflexão, a não ser dor.
A música da Tuyo, como o blues e a escrita de Baldwin, é uma rosa nascida no meio do concreto. Assim também pode ser descrita a vida e a produção de muitas/os artistas negras/os. Uma arte gerada em contextos que não costumam ser ideais, mas que possui o poder de se conectar com outras pessoas, em movimentos que atravessam o tempo. Como as personagens de Baldwin, em inúmeros momentos busquei refúgio na música. Uma forma de lidar com meus sentimentos. Às vezes, dói se ver refletido em algumas letras, em frases que falam tanto sobre nós que poderíamos ter escrito, em trechos tão verdadeiros que seria melhor ignorar. Mas ao mesmo tempo é algo que ajuda a curar. Não a dor, mas a música e arte que nascem dela.
Enquanto lia Se a rua Beale falasse, fui fazendo uma playlist com músicas mencionadas ao longo do livro. Tomei a liberdade de colocar algumas poucas que não aparecem, mas achei que combinariam. Caso tenha se interessado pelo livro, pode ser uma boa playlist para deixar tocando em som ambiente enquanto você faz a leitura. Ou só pra ouvir um pouco de blues mesmo. E quem quiser conhecer a história de Tish e Fonny em outro formato, Se a rua Beale falasse virou filme em 2018 e foi dirigido por Barry Jenkins, o mesmo diretor de Moonlight. Ouçam Tuyo também. Sério, é muito bom! :)
Reply