Ed. 05 – Homem preto, sensível

Nadando contra a maré

Fotografia de um garoto negro deitado na grama, virado para cima e com os olhos fechados. Ele segura uma linha presa a um besouro que está em sua testa.

Gordon Parks, Boy With June Bug, Fort Scott, Kansas, (1963).

“Antes e depois de Moonlight” é o título de um texto que comecei a escrever em 2021, mas nunca terminei. A ideia era falar sobre masculinidades negras e mais especificamente sobre como homens negros e gays/bissexuais são representados em algumas obras. Eu construiria um histórico com exemplos do que chegou até mim durante a infância e a adolescência até alcançar representações mais recentes e mais positivas. Seria um trabalho extenso cobrir esse histórico que tanto conversa com minha biografia quanto reflete nos meus objetivos de hoje em termos de construção de personagens. Imagino que por isso o texto permanece inacabado. E assim continuará, apesar das reflexões que trago aqui relacionadas a esse assunto.

No mês passado, vi dois filmes brasileiros com representações de homens negros muito diferentes. O primeiro, Nosso sonho (2023), foi uma experiência que mexeu muito comigo, porque é raro ver a amizade entre dois homens negros sendo mostrada de uma forma tão delicada e afetuosa. O segundo filme, [cujo o título não mencionarei aqui], foi uma experiência que também mexeu comigo, mas gerando desconforto, porque o protagonista além de ser extremamente raso e bruto, durante quase todo seu tempo de tela só escolheu a violência como resposta — salvos raros momentos em que demonstrou algum traço de humanidade. Com esse segundo exemplo, vi novamente a imagem do homem negro ser construída através de músculos e silêncios. Algo que já aconteceu tantas vezes que não sei se faz sentido bater na tecla do porquê um filme assim é problemático.

Quero falar sobre Nosso sonho

Deixar de falar sobre um filme que achei problemático não quer dizer que defendo a ideia de que deveríamos ignorar ou não questionar representações estereotipadas, nem que determinado tipo de personagem não pode mais existir. Mas pensar a representatividade como tenho pensado atualmente tem muito mais relação com entender que tipo de histórias estão alinhadas aos interesses políticos que defendo.

Fui assistir a Nosso sonho porque tenho feito um exercício pessoal de consumir mais obras nacionais no cinema, mas também porque achei que seria interessante conhecer mais sobre a história de uma dupla musical que fez parte da minha infância. O filme conta a história de Claudinho & Buchecha, uma dupla importante para o funk brasileiro, mostrando como eles se conheceram, a formação da dupla, o sucesso que alcançaram, até chegar na morte de Claudinho. Alguns detalhes cronológicos eram diferentes no meu imaginário, então foi interessante ver a dramatização de algo que eu conhecia de forma fragmentada.

Eu esperava que a amizade dos dois receberia bastante destaque, mas não imaginava que isso seria abordado de uma forma tão sensível e bonita, a ponto de deixar de falar somente sobre a biografia da dupla e expor uma discussão geral de masculinidade. Porque, pra mim, são raros exemplos de obra como essa que mostram afeto entre homens negros sem dar o mesmo destaque para violência ou os processos de embrutecimento.

O filme inclusive não ignora o racismo da nossa sociedade, mas escolheu mostrar isso em detalhes: quando Buchecha vê um carro de polícia se aproximando e decide sair logo de perto ou em situações cotidianas que o protagonista enfrenta no trabalho antes de entrar pra música. A relação dele com o alcoolismo do pai também é abordada de forma interessante pois mostra como essa questão afeta pessoas negras e como pode ser difícil a relação entre pai e filho quando ambos estão magoados e possuem dificuldade de dialogar.

Cenas do filme “Nosso sonho”. Cena 1: Claudinho e Buchecha, crianças, se abraçam. Cena 2: Já adultos, Claudinho abraça Buchecha de lado com um dos braços.

Cenas de “Nosso sonho” (2023).

Outro filme. Por que não?

O último homem negro de São Francisco é um filme estadunidense de 2019 que, por acaso, também vi mês passado. Nele há dois amigos e uma amizade explorada igualmente de forma sensível e com uma fotografia que parece até poesia. O filme é sobre gentrificação e sobre como a cidade presente no título foi se tornando cada vez mais branca, mas é principalmente sobre reivindicar um espaço no mundo. Um dos aspectos que mais chamou minha atenção foi como os dois personagens principais se recusavam a responder a uma ideia hegemônica de masculinidade observada nos outros homens presentes no filme e com os quais convivem. Os protagonistas abraçam suas particularidades e seus interesses artísticos mesmo sabendo que isso significa nadar contra a maré.

Há muito mais o que dizer sobre esse filme e Nosso sonho, mas para isso eu gostaria de assistir ambos uma segunda vez. Quem sabe agora entrem também no histórico daquele texto de 2021. Esses filmes recentes me fizeram voltar a pensar sobre masculinidades, trazendo de volta um desejo de escrever sobre, mesmo que brevemente aqui. Assim, não contribuo com o silêncio.

É sempre importante considerarmos como o racismo opera para criar estereótipos do que significa ser um homem negro. O amor é negado, o silêncio é escudo que fere, a autoestima é fragmentada, e se fechar e se embrutecer costuma parecer a melhor resposta. Ir contra esse sistema é também se opor às imagens relacionadas à criminalidade e às expectativas equivocadas relacionada ao corpo negro. É se recusar a ter a violência como única resposta.

Acolher a sensibilidade, o afeto, o riso e a delicadeza são formas de ir contra essa máquina que opera numa lógica embrutecedora. E assim ir se transformando em poesia.

Quatro cenas do filme “O último homem negro de São Francisco”, todos os personagens nas capturas são homens negros. Cena 1: dois amigos sorriem deitados para cima, um na cama e outro num colchão no chão. Cena 2: os dois protagonistas conversam com um homem mais velho. Cena 3: um homem chora no ombro de outro. Cena 4: os dois protagonistas estão sentados na beira da estrada.

Cenas de “O último homem negro de São Francisco” (2019).

Tenho buscado mais referências no audiovisual brasileiro porque ano passado comecei a estudar cinema, focando principalmente na escrita de roteiro. Atualmente estou finalizando uma oficina de roteiro e direção que faz parte de um projeto do Jovem de Expressão. Lá também acontecem oficinas de outras áreas (como produção, atuação, fotografia) e no fim as turmas se unem pra produzir alguns trabalhos. Estamos na fase de pré-produção de um curta-metragem de ficção científica que eu escrevi o roteiro e vou dirigir. Caso você queira saber mais sobre esse curta e acompanhar o processo, criamos um perfil no Instagram. Como temos poucos recursos, estamos tentando conseguir mais grana pra fazer isso acontecer da maneira mais tranquila possível. Serei muito grato se você puder seguir a página, participar da nossa rifa ou ajudar na divulgação. :)

Em outras edições da newsletter quero falar sobre como tem sido levar minha escrita para esse novo contexto. (Sinto que audiovisual continuará sendo um tema recorrente por aqui). Até a próxima!

Cena de O último homem negro de São Francisco. Os protagonistas andam por uma rua compartilhando o mesmo skate.

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